alfabetização: pé-de-perdão

Uma caixa de giz gigante no colo, presente colorido, novo, novinho. Passou o dedo nas cores, sentiu milimetricamente as sutilezas das possibilidades que guardavam. Um vento frio e sonoro de festa junina soprava do outro lado da janela, e mesmo ao estremecer o sentindo, era como se nada mais se infiltrasse, como se nada mais pudesse preencher com retalhos. Estava distante sem ser. Estava presente sem ser. Milimetricamente deixava de estar para ser. Havia um colorido polido na caixa de 52 gizes. E era como se para que aquelas cores pudessem ser abertas, precisasse limpar de si o cinza da poeira do caminho.

- Todo coração permanece na escola enquanto bate...

Lembrou de uma professora que usava luvas, da graciosidade sinuosa dos ensinamentos, dos dedos fragilmente poupados pela borracha encorpada. Lembrou da poeira de poucas cores do apagador deslizando o quadro.

Pediu emprestado de suas memórias o apagador, e sem calçar luvas de borracha, sem pelica com a alma, pois-se a deslizá-lo.

Apagou.

A lágrima cinza no colo. A festa a fantasia que foi a revelia. As notas baixas. Os despropósitos. Os desencontros. Os nós disfarçados de laços. Os tombos em palco. Os papéis de bala deixados na platéia. As medalhas e as não-medalhas. Os tiros cegos e os momentos de alvo. As duas trancas da porta, e a porta dos fundos. As traições, as incoerências, as danças das sombras no escuro. A dor afiada no peito companheira desde o berço. Os campos de batalha que nunca foram seus, mas que de alguma forma percorrera. O estranhamento de si, o medo do estranhamento alheio, as roupas camufladas.

Apagou.

Mas o apagador seguiu deslizando, quase como algo que segue um compasso, quase como algo que segue sem comando. E quase como se sobre o que apagava desenhasse a palavra amor.

Agora ali estava: gizes coloridos no colo, caos silenciado a volta, velha sacada de janela apagada, tetos, paredes, malas cobertos pelo apagador. Talvez pela primeira vez se perdoava.