Entre dragões

Em tempos de ilusão, de nuvens obscurecendo a vista, aparecera no reino dos dragões uma menina ainda bebê, vinda do reino da delicadeza. Criada entre eles, e como eles, acostumara-se com as leis que estipulavam qualquer vestígio de alegria ou leveza como alvo de  fogo, e qualquer doçura  como o pior dos crimes.

Com ela, então, que não atendia aos padrões básicos, a lei estava sempre de vigia, e eram dos mais diferenciados tipos policiais os que a cuidavam: dragões dos olhos cerrados, dragões especialistas no cuspir fogo, dragões dos peitos duros de chumbo-carcaça.

Mas, crescida ali, se acreditando dragaozinho, dragão se fazia. E admirava, sim, admirava a imponência dos mais incendiários, e em muito por conta disso era intolerante com os covardes, com os que escondiam os olhos cerrados, fingiam não ter peito duro e só cuspiam fogo quando o outro dormia. Mas eram os dos olhos cerrados com os quais mais era inábil, e aos quais mais era suscetível.

Por, no fundo, não ser dragão, pertencer em essência a um reino de delicadeza, queria carinho, e vira e mexe deixava escapulir  palavras sem fumaça, vontades de macio abraço, olhos com doces águas. Para tais gestos estavam encarregados os dragões dos olhos cerrados de julgar, condenar, e convocar os especialistas no cuspir fogo, o que toda vez que acontecia a fazia se sentir rejeitada, menos dragão. Aos covardes tornava-se assim alvo fácil de fofoca e ataques noturnos: ora pela dimensão do que devastava, ora pela debilidade da ternura.

Certa vez, ao se esconder além floresta para chorar, desejando fugir e incendiar todo o reino ao mesmo tempo, uma tempestade deitou água a ponto de poder ver sua sombra refletida em uma poça enlameada. Era a pior imagem: o dragão tomando-lhe os contornos. Era o mais vivo fantasma: o não-dragão que lhe escapulia pela vista distorcida, que ainda assim a chamava por dentro.

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