Barriga na perna

Joana, a gorda, não era gorda, mas bem que parecia, e bem que assim se via: enormemente gorda, de tão gorda pequenina.

Há tempos passados, por um anjo torto fora levada à uma sala de cirurgia. Viu a gordura de frente, por dentro, agarrada, amarelada, feia, com cara de gosmenta. Um doutor, com os olhos em histe, enquanto arrancava gordura de uma barriga, falava dos perigos.

Joana saiu da sala de cirurgia para o espelho, o peito apertado atrapalhava sua subida pelas escadas de dentro, um medo pulsava mais do que toda a vida.

Sete anos se passaram. A cada degrau que enfrentara a gordura escorrera para a perna esquerda, fazendo com que a direita ficasse cada vez mais sobrecarregada ao movimento.

Até que um anjo certo soprara-lhe um balão de luz na barriga. E um guardião, com os olhos doces, enquanto arrancava espinhos de seu peito, falava que ela não era mais aquela, a gorda.

E ela não queria mais ser aquela, tropeçava com a perna gorda, se sentia fraca com a perna, até a perna ficar presa em uma passagem.

Do anjo tordo e do doutor era assustadora a memória: fragilidade é doença, seu coração é fraco. Deveria ter cuidado, depender de cuidados e medicamentos.

Do anjo certo e do guardião ficara-lhe clara a mensagem: precisaria de coragem para da gordura ficar despida, descobrir quem era a não-gorda.

Encruzilhada. Um tremor lhe doeu todo o peito a fazendo se sentir menor que uma criança, com a perna presa só haviam duas possibilidades: se entregava à  escuridão do medo, ou acreditava que na fragilidade encontraria alguma força.

Fez por ela mesma. Colocou o coração a frente, era o que ela tinha, havia de ser bom por algum caminho, haveria de lhe servir de alguma forma a ponto da gordura ser-lhe desnecessária como armadura. Movimentou-se para vencer a passagem.

Joana se sentiu leve como passarinho, libélula, liberta, muito maior do que a imagem que fazia, e nada gorda, lançada para fora do espelho.

Agora todo risco seria descoberta de si mesma.

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