A tal 1a. pessoa
Foi sutil assim mesmo. E de tanto jamais me suporia à beira dos tragos do tempo. A caixa, abandonada anos na casa dos pais, pela irmã devolvida à mãos da dona, residia intocável há semanas logo aqui ao lado do pé. Não a digo minha, muito embora seja. Tampa azul, duas chavezinhas penduradas, acrílico fechado, e dentro: pencas de disquetes. E daí?, seria essa uma boa pergunta. E foi de fato a que me fiz, hoje na lentidão dos consertos virtuais, por alguma faísca de curiosidade ingrata.
Dependurada pelos braços da cadeira a frente do computador, escorreguei os olhos, enfiei os dedos puxando à leitura os rótulos dos disquetes. Coisa boba, sei... mas geralmente quando mais se vai distraído, maior o risco. Estranheza pásmica. O tempo na quadradeza do material, na maior parte preto, alguns coloridos, me veio ao tato. Não lembrava que tempo havia guardado ali; mas fato, bem fato, era um tempo que fiz questão de esquecer, talvez para não me lembrar não ser possível esquecer tanto de si.
No tocar e vasculhar, o ar das certezas velhas saíram da caixa como se presencialmente exalado pelo nariz. Um corredor úmido. Vivências secas. Lugares de suor e coerção. Uma busca sem túnel por não saber de luz. Pessoas, um apanhado de pessoas. Fiquei cá, como quem senta à tv passivamente a engolir um noticiário, reassistindo o sofrimento do mundo. Ali nos disquetes a enciclopédia da dor; e aqui na cadeira, fora da caixa e dos registros, a que não pertence àquilo pelo qual passou.
Deve haver um santo que talvez me assegure isso: se uma não-fé foi o que me salvou, melhor acreditar em mim, certo?
Agora, os olhos revezam entre o teclado, os dedos, a caixa, a tela e a janela. A fumaça tabagista, último real vestígio da época, distrái a núvem das imagens postas fora. Mas não, não vou jogar os disquetes fora, nem formatá-los, nem salvá-los entre meus arquivos. Noite passada me falaram das minhas cores, do que é vivo na minha matéria. Me fez feliz o suficiente ver como a coragem me resgatou de ilhas. Então, simples como é meu simples, inventei de transformar tudo em poesia.
* e o meu obrigada ao proseador poético com gosto pelo confessional...