Primeira Pessoa
Escrever em primeira pessoa, ou fixa nela, é algo que não faço há muito tempo. Não por seguir regra, não sou tão obediente quanto pareço. Aliás, a pessoa que melhor me definiu disse certa vez: sua desobediência sempre revelou sua lealdade ao sentido. Então, voltando, mesmo sendo pessoalmente circular e prolixa, resolvi hoje desobedecer o hábito e ser primeira pessoa, e pessoa desorganizadamente. Estamos em uma pandemia, navegando nas incertezas que achávamos (só nos iludíamos) que não tínhamos. E ficar em quarentena, coloca alguém que sempre foi para o outro, como eu, de volta ao seu umbigo. Confesso, essa experiência tem me posto a reconhecer o quanto o umbigo não é uma bolha, mas uma elipse que se desdobra por nuances, minúcias, tons, uma piscina de trampolim, uma estrada na serra. E a jornada vem sendo humanamente redentora.
Pois bem. Você acordou descabelado hoje? O café deu enjôo? Lembrou de escovar os dentes? Viu que dia é para não se perder na agenda dos boletos? Vou te contar... acordei bem penteada de vida hoje (e completamente descabelada), esqueci o café esfriando (ele andou me azedando), peguei uma escova de dentes para usar na aquarela (esquece a parte do bafo), refleti sobre quais boletos permanecerão nos cálculos (não resolvi) e... gozo há horas o prazer de estar completamente mergulhada no texto poético da minha vida escrevendo. Entre a sanidade da desobediência de fazer o certo, e a insanidade de estar entregue a minha própria água. É um remédio sagrado esse prazer vibrando e alterando oitavas derramando por todo corpo. É uma carícia sem margem entornando pautas recriadas pelos poros. Arte.
A criatividade para mim é um orgasmo. E se eu precisasse ser bem técnica para não ser compreendida com vulgaridade nessa colocação, diria: já tem um monte de pesquisa e teorias que explicam isso (ando bem cansada dos conservadorismos). Mas voltando, toda essa prosa, toda essa narrativa, toda essa volta, é uma tentativa de tatear dizer como é bom usufruir o prazer de ser. E como ele é bem pouco conceituável. Como para mim a escrita, a arte, um lençol de maciez sem bordas onde me desmancho e me reunifico. E para você? Quais os seus espaços sagrados de manifestação da sua existência? Como e quanto o tem tocado e cultivado? Mergulha? Pra valer indo até o fim?