Do ato de entrelinhar 2

DO PÓLEM DAS MÃOS EM FLOR(PARA VIVER UM GRANDE AMOR)

"Para viver um grande amor, preciso é muita concentração e muito siso, muita seriedade e pouco riso — para viver um grande amor."*

Para viver um grande amor, preciso primeiro é fazer-se despido, levar nos olhos o sorriso de quem não flerta com a dor. Para viver, há de se levar a frente o amor, sem dizê-lo grande, mas o fazendo.

"Para viver um grande amor, mister é ser um homem de uma só mulher; pois ser de muitas, poxa! é de colher... — não tem nenhum valor."*

Para viver um grande amor, focar em um é a escolha do a ser cultivado, e é necessária coragem; não pela ilusão da fidelidade, mas pela lealdade ao que lhe dá valor.

"Para viver um grande amor, primeiro é preciso sagrar-se cavalheiro e ser de sua dama por inteiro — seja lá como for. Há que fazer do corpo uma morada onde clausure-se a mulher amada e postar-se de fora com uma espada — para viver um grande amor."*

Para viver um grande amor, que faça, antes, de si um ser inteiro; e encontre, na dama ou no cavalheiro, não um meio, nem a solução dos (ir)racionais desejos, mas outro inteiro inclausurável, aberto ao sagrar o fazer amado, sem que volte a si a espada do desamor. E seja lá como for, que a morada seja o encontro de verdadeiros.

"Para viver um grande amor, vos digo, é preciso atenção como o "velho amigo", que porque é só vos querer sempre consigo para iludir o grande amor. É preciso muitíssimo cuidado com quem quer que não esteja apaixonado, pois quem não está, está sempre preparado pra chatear o grande amor."*

Para viver um grande amor, há de não se enganar com as esquinas, muita prosa é imprescindível, mas prosa sem real ouvido é prosa vazia, e é preciso não ser egoísta, muito cuidado com o que não se quer visto. Ser cego ao que o outro tem disponível é chatear o amor. Apaixonados seguem os poucos que crescem juntos, e conversam feito velhos amigos, e se admiram em suas feituras, sem precisar ser o que pede a tabuada da ilusão do amor conceito, do descuido do ser sem vida.

"Para viver um amor, na realidade, há que compenetrar-se da verdade de que não existe amor sem fidelidade — para viver um grande amor. Pois quem trai seu amor por vanidade é um desconhecedor da liberdade, dessa imensa, indizível liberdade que traz um só amor."*

Para viver um grande amor, que seja esquecido o uso vulgar da palavra fidelidade, amor é coisa livre. Trair a si é descompenetrar-se da realidade. Nenhuma verdade é mais triste que chamar de amor o amor desconhecido e escorregadio. Fiel ao amor são os que se sentindo em liberdade permanecem comprometidos ao sentido.

"Para viver um grande amor, il faut além de fiel, ser bem conhecedor de arte culinária e de judô — para viver um grande amor.Para viver um grande amor perfeito, não basta ser apenas bom sujeito; é preciso também ter muito peito — peito de remador. É preciso olhar sempre a bem-amada como a sua primeira namorada e sua viúva também, amortalhada no seu finado amor."*

Para viver um grande amor, que brilhe nos olhos o ser criança e o ser velhinho, e parceria seja remar no tempo, amparando os tropeços e beijando as rugas. Amor perfeito é seguir além construindo, sem que o outro seja o sentido, mas o bom tempero à língua, entre duas faixas-preta na cama do peito.

"É muito necessário ter em vista um crédito de rosas no florista — muito mais, muito mais que na modista! — para aprazer ao grande amor. Pois do que o grande amor quer saber mesmo, é de amor, é de amor, de amor a esmo; depois, um tutuzinho com torresmo conta ponto a favor..."*

Escolha alguém entendido em jardinagem para caminhar ao lado, nada ao tempo sobrevive sem cuidado, e par sozinho tem pouco crédito de carinho. Há de se saber renovar o saber de amor, fazer-se dito é fazer-se feito. É premissa regar todo dia, não por medo do deserto, mas por gosto do jardim em companhia. E por favor, um aquecer amor derretido é chocolate na cozinha.

"Conta ponto saber fazer coisinhas: ovos mexidos, camarões, sopinhas, molhos, strogonoffs — comidinhas para depois do amor. E o que há de melhor que ir pra cozinha e preparar com amor uma galinha com uma rica e gostosa farofinha, para o seu grande amor?"*

Ah, um mestre cuca de mãos apimentadas, é capaz de em um abraço alimentar o corpo de todo amor. E criatividade expressiva, tem ervas mágicas na cozinha. Quem desgosta de mexidinho de beijo, sopa de acolhimento depois do dia de trabalho, frutos do mar no chuveiro dos toques ensaboados, entrega tinta de sono enroscado, e farofinha de suores gozados?

"Para viver um grande amor é muito, muito importante viver sempre junto e até ser, se possível, um só defunto — pra não morrer de dor. É preciso um cuidado permanente não só com o corpo mas também com a mente, pois qualquer "baixo" seu, a amada sente — e esfria um pouco o amor. Há que ser bem cortês sem cortesia; doce e conciliador sem covardia; saber ganhar dinheiro com poesia — para viver um grande amor."*

Para viver um grande amor, é fundamental querer-se companheiro, sem temer acreditar na mente com amor grande, não-obsecado. Há de se ter uma boa poupança de poesia e coragem, ser cortês com o destino, e se cuidar para não se fazer prisioneiro do ser defunto do risco da dor. Morrer de amor é renascer na escolha do junto, casar umbigos e inaugurar um mundo aonde o que importa é ser sem morrer frio. Ser amado é confiar no amador como bom investidor na conciliação de dois.

"É preciso saber tomar uísque (com o mau bebedor nunca se arrisque!) e ser impermeável ao diz-que-diz-que — que não quer nada com o amor."*

É preciso vencer os vícios, não viver feito um fugitivo, nem se arriscar na permeabilidade dos achismos mesquinhos. Ser certeiro na qualidade da bebida. Beber e dar de beber no mútuo da boca do copo sem fundo do amor, alto teor só é saudável no grande amor: o inteiro e o livre, fiel ao ser em si, premiado no artesanato único da verdade das escolhas de dois.

"Mas tudo isso não adianta nada, se nesta selva obscura e desvairada não se souber achar a bem-amada — para viver um grande amor."*

* Fragmentos de Vinícius de Moraes.

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